Estruturalismo Não Nega a Ciência - Para Marxistas Confusos com o Estruturalismo

 

Marx foi uma influência importante na obra de Deleuze

É fácil encontramos críticas sobre o mal afamado “pós-modernismo” na internet. Em geral, essas críticas advêm tanto de marxistas quanto de adeptos das formas descendentes do positivismo, que podemos chamar de genericamente de cientificismo. 

Acontece que, em geral, as críticas estão erradas. Há quem associe o negacionismo científico, assim como a chamada “pós-verdade”, a certos “ismos” acadêmicos do século XX. 

Essa hipótese crê que a população é influenciada diretamente por estas epistemologias, o que é um equívoco grosseiro. Existem outras fontes muito mais populares que servem de base para esses fenômenos. A própria utilização da expressão “pós-modernismo” já é uma generalização cuja a vagueza em nada corrobora com o rigor lógico que seus inimigos costumam atribuir a si mesmos. 

Nesse “coringa” conceitual se coloca todo tipo de ideia contraditória para assim combatê-las. Um elemento que o constituiria seria o estruturalismo (e o pós-estruturalismo). Este texto é dirigido aos marxistas que incorrem neste equívoco. 

Leitura viciada 

No início da minha vida adulta eu me considerava um marxista ortodoxo: o marxismo, desde Marx e Engels até seus continuadores, acreditava eu, oferecia o método mais eficaz de análise, dando conta de compreender suficientemente bem as relações sociais em seu devir e suas contradições. 

Como eu sempre fui uma pessoa comprometida com o conhecimento, com a verdade, eu não podia adotar uma postura dogmática. E assim sendo, eu prometi para mim que eu não fecharia os olhos para evidências e argumentos contrários aos meus. Eu sempre submeti meus conhecimentos à revisões, como ensina a mais eficiente tecnologia de produção do conhecimento: a ciência. 

Antes de conhecer os estruturalismo de uma forma séria, eu critiquei duramente o que se convencionou chamar de “pós-modernismo”, com todas as suas supostas implicações: irracionalismo, identitarismo, renúncia à luta de classes, etc. O que eu sabia a respeito dessas teorias, o soube através de autores marxistas respeitados (como José Paulo Neto e Carlos Nelson Coutinho, por exemplo, seguindo a linha do Gyorgy Lukács). 

Por algum tempo me dei por satisfeito ao conhecer meu “inimigo” através dos meus “amigos”. Mas meu desejo de refutá-los me fez lê-los em primeira mão, e para a minha grande surpresa, mesmo pensadores marxistas respeitáveis em sua área não foram capazes de fazer uma leitura qualificada daqueles que pretendiam criticar. 

É fácil fazer uma leitura enviesada de certas filosofias, bastando para isso que não se conheça um pressuposto, ou uma série de pressupostos básicos. Entre as filosofias dos séculos XIX e XX há uma verdade mudança de paradigma. 

Com paradigma, me refiro à Thomas Kuhn, que demonstrou que a ciência não evolui simplesmente com um progressivo acumulo de conhecimentos, mas com rupturas e revoluções na própria estruturação desses conhecimentos, nas quais um sistema fundamental de regras é substituído por outro com premissas bastante diferentes. 

Essa mudança de paradigma na filosofia da qual eu me refiro pode ser compreendida como a colocação da linguagem no centro do debate sobre a verdade, que podem ser chamados genericamente de “virada linguística”. Marxistas ortodoxos costumam ler os filósofos do séculos XX se baseando no referencial anterior a essas reflexões, e consequentemente leem mal. Eles não entendem corretamente nem a própria virada. 

Um dos principais alvos dessas críticas equivocadas é o estruturalismo. Esse texto não se dispõe a explicar o que é o estruturalismo: ele serve para sanar equívocos comuns. Também não farei distinção aqui entre estruturalismo e pós-estruturalismo, por entender o pós-estruturalismo como uma forma radical de estruturalismo, que vai até suas últimas consequências. 

O argumento 

O tipo de equivoco mais comum contra o estruturalismo e seus desdobramentos é ver neles uma tal de "crise da razão" que teria desembocado em pelo menos duas coisas: ou no total descrédito do saber e da realidade, ou na validação de toda e qualquer forma de crença, como se todas as narrativas sobre a realidade tivessem o mesmo valor. Podem haver pessoas que pensam assim, mas elas não são estruturalistas nem pós-estruturalistas. 

Na virada dos séc. XIX e XX houve uma revisão de grandes proporções sobre o papel da razão que, até então, atribuía-se um papel muito maior do que de fato tem. Antes, se pensava que a razão era capaz de desvelar o “ser” das coisas, que por meio da abstração podíamos inferir suas essências. 

A conclusão que se chegou foi a de que a razão não tinha esse poder todo, e que essas supostas “essências” não eram, na verdade, coisa intrínseca ao objeto ou fenômeno investigado, mas qualidade atribuída pela linguagem. Por quê? 

Um conceito de algo, uma ideia, uma abstração, mesmo quando diz respeito a algo real, ele não é esse algo. Por exemplo, o conceito de cadeira: é em função de um conjunto de características (quatro perna, um encosto, feito para sentar) que podemos identificar uma quando nos deparamos com ela. 

Mas uma cadeira real possui mais qualidades do que aquelas que a caracterizam enquanto tal: seus detalhes, suas formas, seu material, sua cor, etc. não fazem parte da sua “cadeiridade”. O seu “ser” cadeira é definido por um conjunto de características que foram abstraídas (literalmente, “separadas”) desses entes reais que chamamos de cadeiras. 

Todas as pedras são diferentes umas das outras, mas pela abstração nós transformamos todas elas numa só. Não é possível nomear cada pedra em particular, temos que reduzir a realidade para poder nomeá-la. Nenhuma coisa é idêntica a outra: o real é eterna diferença. 

Por isso o real não pode ser expresso: o real é precisamente aquilo que escapa da conceituação. Quando eu aponto para uma pedra e digo: “esta pedra”, estou tomando-a precisamente pelas características que a definem como pedra e ignoro o resto. 

Isso não implica que não haja nenhuma verdade. Se assim fosse, tudo o que digo aqui, através de conceitos, seria inútil. O que isso implica é saber que não há uma correspondência perfeita entre os objetos e seus nomes, e que portanto a linguagem não revela o “ser” das coisas. 

O que define o “ser” é algo extrínseco ao objeto (características abstraídas), e portanto não é dor “ser” que se fala: as coisas não têm uma essência para que esta seja descoberta (a palavra “essência” vem de “esse”, em latim, literalmente “ser”) - ela é sempre imposta pela linguagem. 

Erros comuns 

QUER DIZER QUE DESISTIRAM DA RAZÃO? Não. Isso implica apenas que a razão não desvela o ser das coisas. O que a razão faz é criar conceitos pelos quais nos relacionamentos intelectualmente com o mundo; teorizar o mundo é criar uma estrutura de signos que nos comunica esse mundo, nunca de maneira perfeita, mas útil e necessária. 

QUER DIZER QUE TUDO É RELATIVO? Nem tudo. É evidente que muito daquilo que era tipo como absoluto passa a ser relativo. Pois se o estruturalismo vê a teorização do mundo não como uma estrutura de “essências”, mas de RELAÇÕES. As coisas assim são definidas dentro de seus contextos, em relação com as demais que as circundam e interagem com elas. 

Isso não significa que a lógica seja relativa. A razão trabalha sob determinadas regras, que são as regras da lógica. Estas não são relativas. As maneiras pelas quais nós ordenamos e classificamos as coisas, porém, são relativas e condicionadas por fatores históricos e sociais. Isso é levar a sério a própria ideia, tão cara aos marxistas, de que não há neutralidade possível. Estamos sempre situados historicamente. 

QUER DIZER QUE O ESTRUTURALISMO É ANTI-CIÊNCIA? A verdade é o oposto: a ciência é muito importante aos estruturalistas. O fato é que as teorias científicas nos fornecem modelos de interpretação da realidade, e não mais que isso. O estruturalismo nega, apenas, que esta seja a única forma legítima de conhecimento. 

QUER DIZER QUE TODA OPINIÃO TEM O MESMO VALOR? Não, e ninguém nega que existem interpretações que são legítimas e outras que não são. A crítica feita à razão deve aumentar o ceticismo ao invés de afrouxá-lo. 

Justamente pela razão não ter os poderes que antes lhe atribuíam, já não há motivos para acreditar em alguma inferência qualquer que se faz sobre o mundo. Nossa razão pode menos do que se pensava, não mais, portanto se deve olhar com ainda mais desconfiança para as superstições e pseudociências. 

O ESTRUTURALISMO NEGA A OBJETIVIDADE E FUNDAMENTA O IDENTITARISMO? A resposta é negativa para as duas perguntas. Hoje se sabe que nossas maneiras de classificar e julgar o mundo sempre estará “contaminado” por certa subjetividade, pois não existe “pureza” da razão, e que não somos neutros. 

Isso tem consequências importantes, mas nenhuma delas é negar que haja certo grau de objetividade e muito menos cair num subjetivismo que diz que a “vivência” é o único fator de legitimação de um conhecimento. O estruturalismo é anti-identitarismo. 

“Contaminado por subjetividade”, aliás, é modo de dizer: o pós-estruturalismo rejeita a primazia do sujeito e se propõe justamente a problematizar a divisão kantiana sujeito-objeto, que se funda nessa primazia. Não há um “sujeito do conhecimento” transcendental, há produção de subjetividade. 

O ESTRUTURALISMO NOS FAZ CAIR NO NIILISMO E NA INAÇÃO POLÍTICA? A ação política consequente não depende da legitimação de uma razão fetichizada. O que o estruturalismo faz é desmanchar certas ilusões, como a confiança de que a história marcha inevitavelmente em direção ao “progresso” e que fatalmente desemboca na utopia, e nos faz colocar os pés no chão do aqui e agora. 

Quem precisa dessas ilusões para agir politicamente (ou seria para encontrar algum tipo de consolação?) vai certamente revoltar-se contra as filosofias do século XX. Mas para quem acha que ainda assim uma ação política pode tornar o mundo um lugar melhor, não há nenhum motivo para niilismo. 

Sobre as críticas ao Marxismo 

É bastante comum os marxistas interpretarem a emergência das filosofias do século XX como uma negação ao marxismo, uma tentativa de superá-lo e de combatê-lo, de vê-lo como algo ultrapassado. 

Talvez eles fiquem surpresos aos descobrirem que a maioria dos mais importantes estruturalistas tinham o marxismo em alta conta e tentaram resgatar sua potência crítica. O próprio Deleuze se declarou marxista, e prometeu escrever um livro chamado “A grandeza de Marx”, o que provavelmente era apenas uma provocação (aos antimarxistas), mas ainda assim uma provocação de caráter político. 

Ideias de que as filosofias do século XX não passam de ideologia burguesa são meros preconceitos. Ver uma teoria apenas como expressão ideológica dos anseios de uma classe sem sequer considerar seus argumentos é uma forma empobrecida do materialismo histórico. 

Também existe uma grande dificuldade de compreender as críticas feitas ao marxismo vindo de estruturalistas. Que críticas são essas? Elas parecem tratar o marxismo como um materialismo vulgar, como idealismo acima da história, como se possuísse uma concepção teleológica e alguns até o aproximam sem reservas do positivismo. 

Mas Marx combateu o positivismo, negou a teleologia, situou as relações sociais na história e não fora dela, concebeu as coisas em sua transformação e o concreto como síntese de múltiplas determinações. Que sentido teriam essas críticas? 

Da minha parte eu digo que muitos críticos perdem a medida da crítica, por não conhecerem o marxismo, e fazem críticas tão enviesadas quanto os marxistas ortodoxos ao estruturalismo. Por outro lado, aquelas críticas citadas têm uma razão de existir. 

Não se pode compreender o marxismo lendo apenas autores marxistas. É preciso ter uma visão de contexto, das discussões intelectuais que aconteciam na época e também depois, em retrospecto. Para colocar as coisas em perspectiva é preciso tomar certo distanciamento delas. 

O positivismo foi, em sua época, uma filosofia anti-metafísica. Existiam positivistas que tinham concepções metafísicas, é claro, mas o positivismo mesmo, ao erguerem suas estruturas teóricas acima da oposição racionalismo x empirismo, foi um golpe contra a metafísica. 

Marx, porém, demonstrou que, ao utilizarem categorias fixas, anti-dialéticas, eles AINDA eram metafísicos, mesmo que não se dessem conta disso. Um adepto do positivismo, que não compreendesse a dialética, da forma como ela era trabalhada por Marx, não poderia compreender a natureza dessa crítica. Acontece algo semelhante aos marxistas hoje. 

Depois que pudemos tomar certo distanciamento da época de Marx e analisar a sua teoria à luz de novas reflexões, percebemos os seus limites. Percebemos o quanto ele avançou no sentido de criar uma filosofia materialista, mas podemos ver onde ele não foi materialista o suficiente. 

Por mais que o marxismo compreenda as coisas como dialéticas, e saiba que elas não podem ser compreendidas senão em suas relações, ainda é de essências que ele está falando: as essências “ocultadas” pelas aparências. 

No marxismo é possível, através do pensamento abstrato, apreender as coisas em sua “concretude”. Desta forma, ele ainda se filia a um tipo de filosofia que poder ser chamada “essencialista”. 

O que fazer com o marxismo agora? 

Nada disso precisa ser considerado uma “derrota” do marxismo. Não se trata de descartá-lo, mas de atualizá-lo. Temos que lê-lo criticamente. Marxistas gostam de ler outras filosofias criticamente “através” do marxismo, mas têm dificuldade de ler criticamente o próprio. Creio que por trás disso haja, às vezes, certo senso de dever: “trair” o marxismo significa trair o proletariado. Crer e “provar” o marxismo se converte numa obrigação moral. 

Mas o marxismo permanece importante. Indispensável para compreender o capitalismo, e até mesmo aquilo que chamamos de “modernidade”; sua crítica radical ao capitalismo e suas formas de ideologia, que legitimam a si próprias e fazem-se passar por neutras, continua atual. 

Já não cremos que se possa chamar a história de “história das lutas de classe” – a história não se resume a isso – mas é ainda através de Marx que compreendemos esta luta, a dinâmica pela qual essa luta não apenas é condicionada, mas como ela mesma condiciona, está na gênese da sociedade. 

Trata-se de readequar o materialismo histórico, não mais como explicação “de tudo”, mas ainda como explicação de algo. Se a linguagem já não expressa o real tal como ele é, então é possível considerar e integrar mais de um discurso a respeito de um dado fenômeno, com a condição de que não se assumam como verdadeiras duas premissas mutuamente excludentes, é claro, mas também que não se as tomem como absolutas, “totalizantes”. Assim, não precisa mais ser isso OU aquilo, podemos adotar isso E aquilo (se isso e aquilo tiverem fundamento). 

Finalmente, não precisamos renunciar de uma crítica política radical e nem de uma prática política pragmática. Pós-estruturalismo não é “anti-poder”, como alguns pensam caricatamente a respeito de Foucault. Na verdade, não existe um “projeto de poder” pós-estruturalista. Isso não é um defeito: não é a isso que ele se propõe. O que ele oferece é ferramentas para pensar o poder. 

Fica o convite para conhecer, sem a mania preguiçosa de conhecer algo apenas através de seus críticos, e sem a pretensão de querer “refutar” coisas que não foram estudadas com a devida atenção. 

Quanto mais eu aprendo sobre filosofa, mais eu tenho consciência do quão pouco eu sei. Essas não são palavras vazias: é preciso compreender isso para se valorizar o saber dos outros, os outros saberes.

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