O Encantamento Bolsonarista: Reflexão Sobre o Comportamento das Massas


Créditos da imagem: Eduardo Matysiak

O inegável fato do bolsonarismo ter trazido à luz crenças, pensamentos e comportamentos irracionais em parte considerável da população exige explicações. Trata-se de um fenômeno que não é novo, já que está bem registrado na História como nações inteiras puderam crer e obedecer os mais cruéis e insanos líderes. Negação da ciência e desdém aos intelectuais, adesão à crenças conspiracionistas e de boatos totalmente desconectados da realidade têm chego a níveis tão extremos que fazem o filme de humor Idiocracy parecer um documentário. Com isso muitas vezes nos sentimos tentados a achar que trata-se de “burrice”, que, como se sabe, se refere não à ignorância, mas à incapacidade de compreender, como se a essas pessoas faltasse algum recurso, alguma habilidade. Mas uma explicação tão simplista dificilmente seria verdadeira. Até porque quase todos já chegamos a conhecer alguém inteligente que foi tragado por essa maré de fanatismo, a ponto de tornar-se incapaz de encadear logicamente duas ideias quando estas negam suas convicções. 

Não basta constatar que a educação pública não tem qualidade, ou que os discursos bolsonaristas apelam para a religião e o moralismo: é preciso explicar porque as pessoas estão dispostas a abandonar qualquer rudimento de lógica para se agarrar a este moralismo. Compreender este fenômeno é parte imprescindível para se encontrar uma solução. A solução, é claro, é política, e por isso precisa levar em consideração comportamentos e ideias da população. Trump, Bolsonaro, Stevie Bannon, etc., levam isso muito a sério, e por isso foram capazes de granjear multidões capazes de acreditar em qualquer coisa. Se Bolsonaro tem alguma habilidade, é a de arrebanhador. Esse comportamento irracional coletivo será usado por mim como pretexto para falar sobre algumas ideias de três importantes pensadores. Espero que meus esforços para resumí-las e simplificá-las não as tenha deformado, mas é importante ter em conta que não passam disso: de simplificações. É preciso ter em mente, também, que o autor está negando desde já que o fenômeno seja simples “burrice”, o que desautoriza concluir que os conceitos discutidos abaixo “tornam as pessoas burras”, para antecipar algum tipo de intepretação equivocada. 

Marx foi um pensador que nos apresentou um conceito convincente para explicar algumas questões. O seu conceito, infelizmente, banalizou-se na linguagem comum. Quando se fala em “ideologia”, em geral se pensa num sistema de pensamento político articulado, que consiste na defesa de algum ideal, geralmente utópico. Quando Marx falava em Ideologia, ele estava falando sempre da ideologia hegemônica. “As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes”. A Ideologia justifica o status quo, e uma de suas características é parecer neutra, justamente como ausência de Ideologia. Como se fosse a normalidade óbvia. “Desconfiai do mais trivial”, dizia Brecht. Marx jamais negou a existência de ideólogos que elaborassem e reforçassem a ideologia (ao contrário, ele os acusou), mas, para ele, a Ideologia nasce de forma espontânea. Isso não significa, naturalmente, que surja do nada. Ela surge das relações sociais. São essas relações que condicionam a existência das pessoas e, consequentemente, a forma como elas veem o mundo. Quer dizer: nossa forma de compreender o mundo é condicionada por nossas experiências, e as ideologias são representações da realidade que justificam e naturalizam as mesmas relações sociais que as produziu. Essas relações sociais, por sua vez, são determinadas pela maneira como se organiza, na sociedade, quem trabalha e quem colhe os frutos do trabalho, em outras palavras: a base material, econômica, que serve de “Infraestrutura”, no linguajar marxista, para a “Superestrutura” cultural. 

Isso nos leva a compreender que, por trás das formas de pensamento e também das relações sociais tidas como “normais”, existe uma construção social e histórica. A função da Ideologia é apagar essa história. Ela é resultado da alienação desse sentido histórico, e pode ser usada como arma política. Da mesma forma que no Modo de Produção Feudal a ideologia religiosa tinha um papel fundamental na manutenção daquele poder (fazer crer que o poder do rei era o poder de Deus, que rebelar-se contra a aristocracia era pecado, etc), o capitalismo oferece sua própria Ideologia que a naturaliza, como quando a liberdade de propriedade e igualdade perante a lei, formal mas não real, geram mitos como a “meritocracia” que culpabiliza os miseráveis pela sua condição e faz parecer que a burguesia teve que trabalhar para conquistar sua fortuna. 

O sujeito alienado não é desprovido de suas faculdades intelectuais. Ele é um sujeito que não vê a “verdade”, mesmo diante de si, porque sua visão está condicionada por um fenômeno social e histórico. Contra esse condicionamento, Marx desenvolveu a sua filosofia. Se ela nos leva a uma visão totalmente objetiva e isenta de qualquer outra forma de ideologia, como alguns creem, essa é outra história. O fato é que Marx, ao nos revelar não mais donos do nosso próprio entendimento, mas como seres historicamente localizados, teve um papel importante na filosofia. Tomemos como certo o fato de que a consciência da população está fundamentalmente ligada à forma como vive, trabalha e se relaciona. A ideologia serve, ao explorado, como grilhões dourados, e assim ele estará apto para morrer pela defesa da própria injustiça do qual é vítima e dos seus algozes. Mas a Ideologia se passa num nível conceitual e, ao meu ver, isso é só uma parte da explicação. 

Outra parte talvez seja melhor esclarecida por outro pensador que também viveu na Alemanha. Vamos considerar que mesmo a Ideologia só é possível porque existem mecanismos psicológicos que a permita. Freud atribuía a si mesmo (ou à psicanálise) o papel de causador de uma ferida narcísica na humanidade (junto de Copérnico e Darwin) ao nos mostrar que, embora a humanidade goste de considerar a sua consciência toda poderosa e reguladora dos instintos e desejos, na verdade existe um Inconsciente muito maior e que, ele sim, está no controle, sem que ao menos percebamos. Em outras palavras, mesmo por trás de escolhas racionais existem objetivos ocultos, desejos escondidos, e que, no nível consciente elaboramos um discurso racional para justificar tais escolhas. Isso teria sido percebido por ele porque os desejos inconscientes dão sinais de sua existência, e tais sinais são passíveis de decifração. Não sabemos o que queremos “realmente”, e até descobrirmos isso, esse desejo vai definir muitas das nossas ações e crenças sem que saibamos, especialmente quando não podemos admitir esse desejo, já que ele pode ser constrangedor ou moralmente condenável. 

Isso obviamente se expressa nas relações sociais e políticas. Freud teve preocupação com fenômenos sociais, pois, embora partisse de uma psicologia individual, com fenômenos psíquicos que ele considerava próprios de todas as pessoas, não ignorou que eles se desenvolvem socialmente. Ao contrário: ele declarou que a psicologia individual é, também, social. E se questionou, na ocasião da Primeira Guerra Mundial, porque multidões se submetem cegamente à um ideal. Ele observou que, na multidão, um indivíduo é capaz de fazer o que não faria sozinho. A “massa” tem determinados comportamentos, e a resposta, para Freud, passava pela seguinte questão: o que mantém essa “massa” coesa? Ele teoriza então sobre o importante conceito de Identificação. Toda identificação exige um investimento afetivo. A libido, desviada da sua função sexual, constrói laços sociais, seguindo certo padrão. Um tipo de identificação acontece quando se vê algo comum no outro, em quem projetamos o Eu. As pessoas podem projetar este Eu na figura de um líder e, a partir daí, estender essa projeção ao grupo. O que mantém a massa coesa é a Identificação. 

Muitas coisas podem ser concluídas a partir daí. Oras, se os indivíduos agem por motivações inconscientes, e pensam estar sendo guiadas por razões que na verdade servem para disfarçar, enganando a si mesmas, as verdadeiras motivações, então elas se tornam cegas para muitas coisas em função de algo mais forte e profundo que a racionalidade. Pode-se pensar, por exemplo, que o que leva os bolsonaristas a acreditar em “kit gay”, “mamadeiras de piroca” e serem tão avessos à discussão lógica e rigorosa, é que eles estão manifestando mecanismos inconscientes passíveis de serem manipulados por líderes como Bolsonaro que, com seus discursos, evocam afetos, desejos e crenças enraizadas fora da esfera racional. 

Em todo o século XX, muitos pensadores teorizaram em cima disso, entre os quais o mais conhecido talvez tenha sido Theodor Adorno. Mas eu gostaria de citar um menos popular: o teórico argentino Ernesto Laclau, que teoriza sobre o conceito de Populismo. Esse conceito não deve ser entendido como valorativo e muito menos pejorativo. Trata-se de um fenômeno que torna possível a formação de identidades coletivas. O Populismo não é bom nem mau, apenas o resultado da Identificação anteriormente mencionada perante demandas sociais não atendidas, em especial quando há um descontentamento com as instituições. Grupos se formam em torno dessas demandas, e um líder pode capitalizá-las através de um discurso. O discurso do líder, quando é vago o suficiente, pode agregar diversas demandas diferentes, por vezes até contraditórias. Laclau explica isso pelo conceito lacaniano de Significante Vazio, que, de forma muito resumida, é algo a que se pode atribuir diferentes significados. Por exemplo: o mote sempre utilizado de “combate à corrupção” pode ser incorporado a diferentes demandas e objetivos. Em outras palavras, grupos diferentes com interesses diferentes ouvem um mesmo discurso e dão a ele o seu próprio significado, vendo-o como a resolução dos seus próprios problemas. Não importa exatamente qual é o discurso: importa o que as pessoas querem que ele signifique. Isso explica, por exemplo, a aceitação de discursos tão inconsistentes, rudimentares e até mesmo perversos de Bolsonaro. 

Esses discursos muitas vezes são discursos de ódios contra grupos específicos, que passam a ser considerados um “inimigo comum”. Pois, inconscientemente, a resolução das demandas está associada à busca por um gozo inalcançável (que para Lacan é a lembrança da sensação de unidade com a mãe); o indivíduo, movido pela falta desse gozo, persegue-o por toda a vida. Esse gozo é projetado em diferentes objetos, e pode ser associado também à algum projeto político. O inimigo comum é visto então como o culpado pela não realização desses projetos, é sentido como sendo quem os impede de atingir esse gozo. Esse inimigo pode ser os judeus, o PT ou o Leonardo DiCaprio, tanto faz, não importa: o que importa é que haja alguém para culpar. O discurso do líder soa como uma promessa de que, ao vencer esse inimigo, o gozo será alcançado. O que interessa aqui é perceber que a lógica própria da constituição dessas identidades se passa numa dimensão afetiva, e não é guiada pela racionalidade. A racionalidade é só parte do processo, que ocorre num nível mais superficial: o nível consciente. 

Engana-se quem considera que isso só ocorre a pessoas que carecem de algum tipo de instrução. Este é um fenômeno que ocorre a todos, inclusive ao autor deste texto, e não podemos evitar a Identificação apesar de podermos ter mais ou menos consciência dela. O Populismo também não ocorre somente em movimentos fascistas ou criptofascistas, como é o caso do bolsonarismo, mas em praticamente toda política de massas, por assim dizer, e em todo o espectro político, e mesmo em e por causas legítimas. É importante lembrar que o ser humano não é “razão pura”, os processos inconscientes sempre estarão presentes em toda política real, que, por sua vez, jamais corresponde ao ideal moderno e racionalista do “homem” (ideal este tão caro aos liberais). Esta concepção foi, também, o que nos trouxe até aqui.

Então, talvez, seja ingenuidade a ideia que ocorre tanto à certa direita quanto à certa esquerda, de que baste oferecer educação de qualidade para que o quadro seja revertido. Muito falou-se de como os oficiais nazistas eram altamente qualificados em áreas específicas, incluindo filosofia, história, economia; mostrando que nem toda cultura, por si só, é capaz de blindar as pessoas do fanatismo. Não podemos esperar soluções que contem exclusivamente com a racionalidade, como se bastasse demonstrar para as pessoas a inconsistência do discurso “ideológico” ou as injustiças desse mundo para que elas se convençam. Enquanto a esquerda séria subestimar a importância dessa questão, os afetos e subjetividades da população serão utilizados pelas forças mais reacionárias ou por algumas teorias indentitárias subjetivistas e desagregadoras que, embora se afirmem de esquerda, são uma grande vitória do reacionarismo. 

A ideia da democracia, em seu paradigma liberal que funda as nossas noções modernas de política, se baseiam em certa igualdade perante a lei, pois todos são iguais porque livres, e livres porque racionais, não tendo que se sujeitar à tutela uns de outros. Mas será que alguém ainda acredita nisso após ter presenciado o bolsonarismo? Não estou sugerindo o abandono do ideal democrático, mas sim que há um pressuposto que talvez não se sustente (a de que somos guiados pela razão), e que portanto esse ideal precise ser aperfeiçoado, tendo em vista não somente as abstrações dos pensadores racionalistas dos séculos passados, mas também em dados observados neste tempo em que se tentou implementar tal modelo. 

Seja como for, o bolsonarismo aconteceu por certas razões, entre as quais a insatisfação popular com as instituições e seu descrédito. Mas não se pode pensar que a solução deste problema seja simplesmente restaurar esta confiança nestas instituições preenchendo-as com políticos honestos. No ideal democrático, no capitalismo, estas instituições devem resolver os problemas sociais, supondo-os conciliáveis, ou, pelo menos, “coexistíveis”, e os diferentes grupos devem ter seu espaço para reivindicar seus direitos. No entanto, numa sociedade dividida em classes sociais, existem interesses que não se conciliam e uma coexistência que não existe senão pela exploração e violência, e as instituições são incapazes de cumprir a seu objetivo. E isso se passa de forma a nos fazer questionar se tais instituições não têm servido secretamente (apesar de há muito já não ser segredo) para outros propósitos, e que os propósitos “ideais” tenham consistido numa aparência dada pela ideologia própria do liberalismo. Os grupos que detém o poder (e o verdadeiro poder é econômico) controlam essas instituições, financiando candidaturas, quando não são eles mesmos os candidatos. Francamente acho que não é sequer adequando falar em “paradoxo da democracia”, ao estilo de Popper, já que, muitas vezes, a democracia tenha sido não mais que um conjunto de formalidades legais que têm servido de legitimação desses poderes que são, em última análise, antidemocráticos. Especialmente na América Latina, palco de tantos golpes militares-empresariais. Assim, o bolsonarismo não é uma causa para a falência da democracia, mas um sintoma de que ela já não ia bem. Tampouco continuará sem que haja mudanças profundas. 

Não basta constatar que a educação pública não tem qualidade, ou que os discursos bolsonaristas apelam para a religião e o moralismo: é preciso explicar porque as pessoas estão dispostas a abandonar qualquer rudimento de lógica para se agarrar a este moralismo. Compreender este fenômeno é parte imprescindível para se encontrar uma solução. A solução, é claro, é política, e por isso precisa levar em consideração comportamentos e ideias da população. Trump, Bolsonaro, Stevie Bannon, etc., levam isso muito a sério, e por isso foram capazes de granjear multidões capazes de acreditar em qualquer coisa. Se Bolsonaro tem alguma habilidade, é a de arrebanhador. Esse comportamento irracional coletivo será usado por mim como pretexto para falar sobre algumas ideias de três importantes pensadores. Espero que meus esforços para resumí-las e simplificá-las não as tenha deformado, mas é importante ter em conta que não passam disso: de simplificações. É preciso ter em mente, também, que o autor está negando desde já que o fenômeno seja simples “burrice”, o que desautoriza concluir que os conceitos discutidos abaixo “tornam as pessoas burras”, para antecipar algum tipo de intepretação equivocada. 

Marx foi um pensador que nos apresentou um conceito convincente para explicar algumas questões. O seu conceito, infelizmente, banalizou-se na linguagem comum. Quando se fala em “ideologia”, em geral se pensa num sistema de pensamento político articulado, que consiste na defesa de algum ideal, geralmente utópico. Quando Marx falava em Ideologia, ele estava falando sempre da ideologia hegemônica. “As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes”. A Ideologia justifica o status quo, e uma de suas características é parecer neutra, justamente como ausência de Ideologia. Como se fosse a normalidade óbvia. “Desconfiai do mais trivial”, dizia Brecht. Marx jamais negou a existência de ideólogos que elaborassem e reforçassem a ideologia (ao contrário, ele os acusou), mas, para ele, a Ideologia nasce de forma espontânea. Isso não significa, naturalmente, que surja do nada. Ela surge das relações sociais. São essas relações que condicionam a existência das pessoas e, consequentemente, a forma como elas veem o mundo. Quer dizer: nossa forma de compreender o mundo é condicionada por nossas experiências, e as ideologias são representações da realidade que justificam e naturalizam as mesmas relações sociais que as produziu. Essas relações sociais, por sua vez, são determinadas pela maneira como se organiza, na sociedade, quem trabalha e quem colhe os frutos do trabalho, em outras palavras: a base material, econômica, que serve de “Infraestrutura”, no linguajar marxista, para a “Superestrutura” cultural. 

Isso nos leva a compreender que, por trás das formas de pensamento e também das relações sociais tidas como “normais”, existe uma construção social e histórica. A função da Ideologia é apagar essa história. Ela é resultado da alienação desse sentido histórico, e pode ser usada como arma política. Da mesma forma que no Modo de Produção Feudal a ideologia religiosa tinha um papel fundamental na manutenção daquele poder (fazer crer que o poder do rei era o poder de Deus, que rebelar-se contra a aristocracia era pecado, etc), o capitalismo oferece sua própria Ideologia que a naturaliza, como quando a liberdade de propriedade e igualdade perante a lei, formal mas não real, geram mitos como a “meritocracia” que culpabiliza os miseráveis pela sua condição e faz parecer que a burguesia teve que trabalhar para conquistar sua fortuna. 

O sujeito alienado não é desprovido de suas faculdades intelectuais. Ele é um sujeito que não vê a “verdade”, mesmo diante de si, porque sua visão está condicionada por um fenômeno social e histórico. Contra esse condicionamento, Marx desenvolveu a sua filosofia. Se ela nos leva a uma visão totalmente objetiva e isenta de qualquer outra forma de ideologia, como alguns creem, essa é outra história. O fato é que Marx, ao nos revelar não mais donos do nosso próprio entendimento, mas como seres historicamente localizados, teve um papel importante na filosofia. Tomemos como certo o fato de que a consciência da população está fundamentalmente ligada à forma como vive, trabalha e se relaciona. A ideologia serve, ao explorado, como grilhões dourados, e assim ele estará apto para morrer pela defesa da própria injustiça do qual é vítima e dos seus algozes. Mas a Ideologia se passa num nível conceitual e, ao meu ver, isso é só uma parte da explicação. 

Outra parte talvez seja melhor esclarecida por outro pensador que também viveu na Alemanha. Vamos considerar que mesmo a Ideologia só é possível porque existem mecanismos psicológicos que a permita. Freud atribuía a si mesmo (ou à psicanálise) o papel de causador de uma ferida narcísica na humanidade (junto de Copérnico e Darwin) ao nos mostrar que, embora a humanidade goste de considerar a sua consciência toda poderosa e reguladora dos instintos e desejos, na verdade existe um Inconsciente muito maior e que, ele sim, está no controle, sem que ao menos percebamos. Em outras palavras, mesmo por trás de escolhas racionais existem objetivos ocultos, desejos escondidos, e que, no nível consciente elaboramos um discurso racional para justificar tais escolhas. Isso teria sido percebido por ele porque os desejos inconscientes dão sinais de sua existência, e tais sinais são passíveis de decifração. Não sabemos o que queremos “realmente”, e até descobrirmos isso, esse desejo vai definir muitas das nossas ações e crenças sem que saibamos, especialmente quando não podemos admitir esse desejo, já que ele pode ser constrangedor ou moralmente condenável.

Isso obviamente se expressa nas relações sociais e políticas. Freud teve preocupação com fenômenos sociais, pois, embora partisse de uma psicologia individual, com fenômenos psíquicos que ele considerava próprios de todas as pessoas, não ignorou que eles se desenvolvem socialmente. Ao contrário: ele declarou que a psicologia individual é, também, social. E se questionou, na ocasião da Primeira Guerra Mundial, porque multidões se submetem cegamente à um ideal. Ele observou que, na multidão, um indivíduo é capaz de fazer o que não faria sozinho. A “massa” tem determinados comportamentos, e a resposta, para Freud, passava pela seguinte questão: o que mantém essa “massa” coesa? Ele teoriza então sobre o importante conceito de Identificação. Toda identificação exige um investimento afetivo. A libido, desviada da sua função sexual, constrói laços sociais, seguindo certo padrão. Um tipo de identificação acontece quando se vê algo comum no outro, em quem projetamos o Eu. As pessoas podem projetar este Eu na figura de um líder e, a partir daí, estender essa projeção ao grupo. O que mantém a massa coesa é a Identificação. 

Muitas coisas podem ser concluídas a partir daí. Oras, se os indivíduos agem por motivações inconscientes, e pensam estar sendo guiadas por razões que na verdade servem para disfarçar, enganando a si mesmas, as verdadeiras motivações, então elas se tornam cegas para muitas coisas em função de algo mais forte e profundo que a racionalidade. Pode-se pensar, por exemplo, que o que leva os bolsonaristas a acreditar em “kit gay”, “mamadeiras de piroca” e serem tão avessos à discussão lógica e rigorosa, é que eles estão manifestando mecanismos inconscientes passíveis de serem manipulados por líderes como Bolsonaro que, com seus discursos, evocam afetos, desejos e crenças enraizadas fora da esfera racional. 

Em todo o século XX, muitos pensadores teorizaram em cima disso, entre os quais o mais conhecido talvez tenha sido Theodor Adorno. Mas eu gostaria de citar um menos popular: o teórico argentino Ernesto Laclau, que teoriza sobre o conceito de Populismo. Esse conceito não deve ser entendido como valorativo e muito menos pejorativo. Trata-se de um fenômeno que torna possível a formação de identidades coletivas. O Populismo não é bom nem mau, apenas o resultado da Identificação anteriormente mencionada perante demandas sociais não atendidas, em especial quando há um descontentamento com as instituições. Grupos se formam em torno dessas demandas, e um líder pode capitalizá-las através de um discurso. O discurso do líder, quando é vago o suficiente, pode agregar diversas demandas diferentes, por vezes até contraditórias. Laclau explica isso pelo conceito lacaniano de Significante Vazio, que, de forma muito resumida, é algo a que se pode atribuir diferentes significados. Por exemplo: o mote sempre utilizado de “combate à corrupção” pode ser incorporado a diferentes demandas e objetivos. Em outras palavras, grupos diferentes com interesses diferentes ouvem um mesmo discurso e dão a ele o seu próprio significado, vendo-o como a resolução dos seus próprios problemas. Não importa exatamente qual é o discurso: importa o que as pessoas querem que ele signifique. Isso explica, por exemplo, a aceitação de discursos tão inconsistentes, rudimentares e até mesmo perversos de Bolsonaro. 

Esses discursos muitas vezes são discursos de ódios contra grupos específicos, que passam a ser considerados um “inimigo comum”. Pois, inconscientemente, a resolução das demandas está associada à busca por um gozo inalcançável (que para Lacan é a lembrança da sensação de unidade com a mãe); o indivíduo, movido pela falta desse gozo, persegue-o por toda a vida. Esse gozo é projetado em diferentes objetos, e pode ser associado também à algum projeto político. O inimigo comum é visto então como o culpado pela não realização desses projetos, é sentido como sendo quem os impede de atingir esse gozo. Esse inimigo pode ser os judeus, o PT ou o Leonardo DiCaprio, tanto faz, não importa: o que importa é que haja alguém para culpar. O discurso do líder soa como uma promessa de que, ao vencer esse inimigo, o gozo será alcançado. O que interessa aqui é perceber que a lógica própria da constituição dessas identidades se passa numa dimensão afetiva, e não é guiada pela racionalidade. A racionalidade é só parte do processo, que ocorre num nível mais superficial: o nível consciente. 

Engana-se quem considera que isso só ocorre a pessoas que carecem de algum tipo de instrução. Este é um fenômeno que ocorre a todos, inclusive ao autor deste texto, e não podemos evitar a Identificação apesar de podermos ter mais ou menos consciência dela. O Populismo também não ocorre somente em movimentos fascistas ou criptofascistas, como é o caso do bolsonarismo, mas em praticamente toda política de massas, por assim dizer, e em todo o espectro político, e mesmo em e por causas legítimas. É importante lembrar que o ser humano não é “razão pura”, os processos inconscientes sempre estarão presentes em toda política real, que, por sua vez, jamais corresponde ao ideal moderno e racionalista do “homem” (ideal este tão caro aos liberais). Esta concepção foi, também, o que nos trouxe até aqui.

Então, talvez, seja ingenuidade a ideia que ocorre tanto à certa direita quanto à certa esquerda, de que baste oferecer educação de qualidade para que o quadro seja revertido. Muito falou-se de como os oficiais nazistas eram altamente qualificados em áreas específicas, incluindo filosofia, história, economia; mostrando que nem toda cultura, por si só, é capaz de blindar as pessoas do fanatismo. Não podemos esperar soluções que contem exclusivamente com a racionalidade, como se bastasse demonstrar para as pessoas a inconsistência do discurso “ideológico” ou as injustiças desse mundo para que elas se convençam. Enquanto a esquerda séria subestimar a importância dessa questão, os afetos e subjetividades da população serão utilizados pelas forças mais reacionárias ou por algumas teorias indentitárias subjetivistas e desagregadoras que, embora se afirmem de esquerda, são uma grande vitória do reacionarismo. 

A ideia da democracia, em seu paradigma liberal que funda as nossas noções modernas de política, se baseiam em certa igualdade perante a lei, pois todos são iguais porque livres, e livres porque racionais, não tendo que se sujeitar à tutela uns de outros. Mas será que alguém ainda acredita nisso após ter presenciado o bolsonarismo? Não estou sugerindo o abandono do ideal democrático, mas sim que há um pressuposto que talvez não se sustente (a de que somos guiados pela razão), e que portanto esse ideal precise ser aperfeiçoado, tendo em vista não somente as abstrações dos pensadores racionalistas dos séculos passados, mas também em dados observados neste tempo em que se tentou implementar tal modelo. 

Seja como for, o bolsonarismo aconteceu por certas razões, entre as quais a insatisfação popular com as instituições e seu descrédito. Mas não se pode pensar que a solução deste problema seja simplesmente restaurar esta confiança nestas instituições preenchendo-as com políticos honestos. No ideal democrático, no capitalismo, estas instituições devem resolver os problemas sociais, supondo-os conciliáveis, ou, pelo menos, “coexistíveis”, e os diferentes grupos devem ter seu espaço para reivindicar seus direitos. No entanto, numa sociedade dividida em classes sociais, existem interesses que não se conciliam e uma coexistência que não existe senão pela exploração e violência, e as instituições são incapazes de cumprir a seu objetivo. E isso se passa de forma a nos fazer questionar se tais instituições não têm servido secretamente (apesar de há muito já não ser segredo) para outros propósitos, e que os propósitos “ideais” tenham consistido numa aparência dada pela ideologia própria do liberalismo. Os grupos que detém o poder (e o verdadeiro poder é econômico) controlam essas instituições, financiando candidaturas, quando não são eles mesmos os candidatos. Francamente acho que não é sequer adequando falar em “paradoxo da democracia”, ao estilo de Popper, já que, muitas vezes, a democracia tenha sido não mais que um conjunto de formalidades legais que têm servido de legitimação desses poderes que são, em última análise, antidemocráticos. Especialmente na América Latina, palco de tantos golpes militares-empresariais. Assim, o bolsonarismo não é uma causa para a falência da democracia, mas um sintoma de que ela já não ia bem. Tampouco continuará sem que haja mudanças profundas.


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